Filosofia Portuguesa: pensamento aberto à pluralidade
Por ocasião da publicação da monumental
obra intitulada "História do pensamento filosófico português", a jornalista
Raquel Santos entrevistou Pedro Calafate [PC], Professor da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, e Coordenador da referida obra.
Do interessante diálogo, retemos
alguns pontos que nos parecem bastante significativos, seguindo de muito perto a
explanação de PC.
Desde logo, a questão da existência,
ou não, de um pensamento, ou mais propriamente, de uma filosofia “portuguesa”, própria
e específica, enquanto tal. Trata-se de um problema persistente ao longo do
tempo, mas avivado, sobretudo, no séc. XX, e de cuja abordagem não se pode
cindir o modelo de filosofia que se instalou na mente coletiva, a saber, um
modelo de reflexão sistemática e sistematizadora, argumentativa, ordenada
segundo uma disciplina lógica, rigorosa hierarquizada, que lhe garante a
unificação, e de que as tradições germânica, inglesa, francesa, são os melhores
representantes. Há que convir que este modelo não é o mais corrente entre nós,
não é o mais praticado pelos nossos intelectuais, pelos pensadores.
Entre nós toma lugar,
frequentemente, um pensamento mais indisciplinado, no “sentido em que percorre várias
áreas do saber”, se adentra e se mistura com outras áreas que não apenas a área
da Filosofia. Os diversos temas filosóficos expressam-se abundantemente nos domínios
da literatura, da poesia, da parenética, isto é, em textos, que à primeira vista
não seriam textos tecnicamente filosóficos, como são considerados, tradicionalmente,
os tratados.
Porém, não é esta “dispersividade”
que caracteriza primordialmente o núcleo do nosso pensamento. Como diz PC, “há
ritmos”, há tendências a que é preciso dar atenção, e que até podem contradizer
essa miscigenação de géneros discursivos a que somos tão propensos. Por
exemplo, recorda PC, há duas grandes escolas do pensamento filosófico português
que atingiram enorme projeção: a escolástica, entre nós designada por “Segunda
Escolástica” ou Escolástica Renovada, obra da Companhia de Jesus e do Colégio
das Artes que lhe foi confiado por D. João III, que se desenvolveu num verdadeiro
espírito de rigor e como autêntico sistema. A outra escola de pensamento foi o
positivismo, já no séc. XIX, também com rigor e sistematicidade. Ou seja, há que ter em conta uma certa
“pluralidade de formas de expressão do pensamento” e de estilos discursivos que
a filosofia adquire na cultura portuguesa, que lhe confere uma riqueza enorme e
que exige do intérprete e do estudioso uma grande ginástica. É sempre um grande
desafio.
PC faz referência à influência da
heresia do priscilianismo, na fase emergente do cristianismo, e à sua tendência
para o naturalismo, o culto da natureza, que vai assomando aqui e ali, em diversos
autores, e particularmente nos “heterodoxos” do séc. XIX e XX: T. de Pascoaes,
G. Junqueiro, Sampaio Bruno…, linhas de continuidade nas quais se acentua esse misticismo
da natureza.
Também o traço do messianismo, na
sua complexidade, lhe merece consideração. Não o messianismo, entendido como
simples espera da vinda de um novo messias, um salvador, mas o messianismo na
sua vertente mais rica para as ideias, como “crença na redenção futura da
humanidade”. Precisamente, na linha de Pascoaes, como sinónimo da luta pela vitória
sobre a dor, sobre o sofrimento e sobre a queda; e logo, como esperança na
recuperação de uma cisão, de uma rutura sobre a qual se instalou o mundo. É neste
sentido que há autores interessantes messiânicos, não cristãos, que negam o
dogma cristão da criação, pois entendem que “o mundo não foi criado
voluntariamente por Deus”, mas “o mundo resulta de uma queda de Deus”; por isso, Deus não é omnipotente e carece mesmo da ajuda do homem para se reerguer e
assim redimir a própria criação. É deste novelo que Pascoaes assume o saudosismo,
um projetar a redenção de Deus, do homem e humanidade, de um homem que “ajuda
Deus decaído a recuperar-se, a reunificar-se após uma cisão misteriosa, após
uma criação involuntária”.
Vem a terreiro Raul Brandão e o seu
escrito O Padre, no qual se inscreve a
incontornável problemática existencial nietzscheana da morte de Deus e com ela,
a da perda de referências, a desarmonia e desestruturação do mundo, o não-sentido,
sem balizas, “sem teto, entre ruínas”, no fundo do abismo, a modo do
desesperante pessimismo dos finais do séc. XIX. Trata-se, segundo PC, “do tema
mais dilacerante do nosso tempo: saber se Deus existe, ou não existe!” Perante
a impossibilidade da resposta afirmativa ou negativa, fica a expressão de um
desejo: “Deus existe porque a melhor parte de nós quer que Ele exista”! Raul Brandão retira a discussão do plano da fé e do dogma e trá-lo para o âmago da
interrogação profunda do homem, expressando a sua revolta contra a morte; a
melhor parte de nós revolta-se contra a finitude, contra a morte, a hipocrisia,
projetando-se para o infinito. Raul Brandão funciona aqui como um
exemplo paradigmático, mas algo esquecido, com o seu teatro existencial, os seus
diários e ensaios, feitos de um lastro profundamente existencial, percursor –
recorda PC – de muitos temas assumidos por Sartre, Camus…; no fundo, o mesmo
espanto do homem pela descoberta de si… presente em tantos outros, como
Virgílio Ferreira.
E sempre a interrogação-âncora: é disto
que é feita a identidade da filosofia portuguesa? PC responde com muita prudência. Não
lhe interessa a identidade em sentido estático, mas em sentido dinâmico, como “descoberta
permanente” e evolutiva de nós próprios. Neste sentido, a questão da identidade
não se resolve em termos científicos, antes é uma questão de resposta aberta e
inacabada, trabalhosa também. E é muito elucidativa esta hermenêutica da
identidade. PC afirma que ela se encontra, por exemplo, na “atmosfera” destes
textos, na forma como se foram, gradualmente, elegendo determinados problemas e
temáticas. Assim, entre nós, prevalecem os temas de natureza ético-política e
jurídica, teológica, o tema de Deus – seja num sentido mais ortodoxo ou mais
heterodoxo – está sempre presente, bem como o da organização da sociedade, dos fundamentos
do Estado, origem e finalidade do poder, da ideia de Império, tudo isso são
dados importantes para a ideia da construção de um destino comum, de um destino
coletivo, que liga imediatamente com a questão da relação entre a Igreja e o
Estado, questão que vem desde a fundação da nacionalidade até ao presente.
A questão da identidade liga-se ao
problema “Portugal”. De facto, a nossa cultura institucionalizou essa magna e persistente
questão, vivida com particular ênfase pelos “estrangeirados”, mas não só.
Problema que desencadeou, também, uma visão decadente e que hoje nos atinge. PC
explica de modo cristalino, como passámos de uma “perspetiva de segurança
profunda do nosso destino até finais do séc. XVII” e rapidamente caímos no seu
oposto, para uma ideia de “povo que pouco vale”, somos como uma folha em branco
a ser escrita e moldada não já por nós, mas pelos de fora, pelos europeus, que
trazem a garantia e o progresso, sinónimo de modernização do País!
Por último, uma reflexão sobre o
sentido da homogeneidade de pensamento do Séc. XVIII. Neste Século das Luzes há “uma grande
identidade de pensamento entre os autores”. O problema que os move é,
sobretudo, o combate à Escolástica e a imposição pela força do Estado absoluto
e do despotismo esclarecido, de modo “a retirar Portugal do domínio da Escolástica
e do modelo cultural da Companhia de Jesus”. Havia uma consciência dramática,
trágica, de que Portugal estava numa via errada, tinha escolhido um caminho
errado. E era preciso emendá-lo, com urgência.
Uma entrevista a rever e
refletir, em todo o tempo.
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