terça-feira, 31 de março de 2020

Filosofia Portuguesa: pensamento aberto à pluralidade



Por ocasião da publicação da monumental obra intitulada "História do pensamento filosófico português", a jornalista Raquel Santos entrevistou Pedro Calafate [PC], Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e Coordenador da referida obra.

Do interessante diálogo, retemos alguns pontos que nos parecem bastante significativos, seguindo de muito perto a explanação de PC.

Desde logo, a questão da existência, ou não, de um pensamento, ou mais propriamente, de uma filosofia “portuguesa”, própria e específica, enquanto tal. Trata-se de um problema persistente ao longo do tempo, mas avivado, sobretudo, no séc. XX, e de cuja abordagem não se pode cindir o modelo de filosofia que se instalou na mente coletiva, a saber, um modelo de reflexão sistemática e sistematizadora, argumentativa, ordenada segundo uma disciplina lógica, rigorosa hierarquizada, que lhe garante a unificação, e de que as tradições germânica, inglesa, francesa, são os melhores representantes. Há que convir que este modelo não é o mais corrente entre nós, não é o mais praticado pelos nossos intelectuais, pelos pensadores.
Entre nós toma lugar, frequentemente, um pensamento mais indisciplinado, no “sentido em que percorre várias áreas do saber”, se adentra e se mistura com outras áreas que não apenas a área da Filosofia. Os diversos temas filosóficos expressam-se abundantemente nos domínios da literatura, da poesia, da parenética, isto é, em textos, que à primeira vista não seriam textos tecnicamente filosóficos, como são considerados, tradicionalmente, os tratados.  
Porém, não é esta “dispersividade” que caracteriza primordialmente o núcleo do nosso pensamento. Como diz PC, “há ritmos”, há tendências a que é preciso dar atenção, e que até podem contradizer essa miscigenação de géneros discursivos a que somos tão propensos. Por exemplo, recorda PC, há duas grandes escolas do pensamento filosófico português que atingiram enorme projeção: a escolástica, entre nós designada por “Segunda Escolástica” ou Escolástica Renovada, obra da Companhia de Jesus e do Colégio das Artes que lhe foi confiado por D. João III, que se desenvolveu num verdadeiro espírito de rigor e como autêntico sistema. A outra escola de pensamento foi o positivismo, já no séc. XIX, também com rigor e sistematicidade. Ou seja, há que ter em conta uma certa “pluralidade de formas de expressão do pensamento” e de estilos discursivos que a filosofia adquire na cultura portuguesa, que lhe confere uma riqueza enorme e que exige do intérprete e do estudioso uma grande ginástica. É sempre um grande desafio.

PC faz referência à influência da heresia do priscilianismo, na fase emergente do cristianismo, e à sua tendência para o naturalismo, o culto da natureza, que vai assomando aqui e ali, em diversos autores, e particularmente nos “heterodoxos” do séc. XIX e XX: T. de Pascoaes, G. Junqueiro, Sampaio Bruno…, linhas de continuidade nas quais se acentua esse misticismo da natureza.

Também o traço do messianismo, na sua complexidade, lhe merece consideração. Não o messianismo, entendido como simples espera da vinda de um novo messias, um salvador, mas o messianismo na sua vertente mais rica para as ideias, como “crença na redenção futura da humanidade”. Precisamente, na linha de Pascoaes, como sinónimo da luta pela vitória sobre a dor, sobre o sofrimento e sobre a queda; e logo, como esperança na recuperação de uma cisão, de uma rutura sobre a qual se instalou o mundo. É neste sentido que há autores interessantes messiânicos, não cristãos, que negam o dogma cristão da criação, pois entendem que “o mundo não foi criado voluntariamente por Deus”, mas “o mundo resulta de uma queda de Deus”; por isso, Deus não é omnipotente e carece mesmo da ajuda do homem para se reerguer e assim redimir a própria criação. É deste novelo que Pascoaes assume o saudosismo, um projetar a redenção de Deus, do homem e humanidade, de um homem que “ajuda Deus decaído a recuperar-se, a reunificar-se após uma cisão misteriosa, após uma criação involuntária”.

Vem a terreiro Raul Brandão e o seu escrito O Padre, no qual se inscreve a incontornável problemática existencial nietzscheana da morte de Deus e com ela, a da perda de referências, a desarmonia e desestruturação do mundo, o não-sentido, sem balizas, “sem teto, entre ruínas”, no fundo do abismo, a modo do desesperante pessimismo dos finais do séc. XIX. Trata-se, segundo PC, “do tema mais dilacerante do nosso tempo: saber se Deus existe, ou não existe!” Perante a impossibilidade da resposta afirmativa ou negativa, fica a expressão de um desejo: “Deus existe porque a melhor parte de nós quer que Ele exista”! Raul Brandão retira a discussão do plano da fé e do dogma e trá-lo para o âmago da interrogação profunda do homem, expressando a sua revolta contra a morte; a melhor parte de nós revolta-se contra a finitude, contra a morte, a hipocrisia, projetando-se para o infinito. Raul Brandão funciona aqui como um exemplo paradigmático, mas algo esquecido, com o seu teatro existencial, os seus diários e ensaios, feitos de um lastro profundamente existencial, percursor – recorda PC – de muitos temas assumidos por Sartre, Camus…; no fundo, o mesmo espanto do homem pela descoberta de si… presente em tantos outros, como Virgílio Ferreira.

E sempre a interrogação-âncora: é disto que é feita a identidade da filosofia portuguesa? PC responde com muita prudência. Não lhe interessa a identidade em sentido estático, mas em sentido dinâmico, como “descoberta permanente” e evolutiva de nós próprios. Neste sentido, a questão da identidade não se resolve em termos científicos, antes é uma questão de resposta aberta e inacabada, trabalhosa também. E é muito elucidativa esta hermenêutica da identidade. PC afirma que ela se encontra, por exemplo, na “atmosfera” destes textos, na forma como se foram, gradualmente, elegendo determinados problemas e temáticas. Assim, entre nós, prevalecem os temas de natureza ético-política e jurídica, teológica, o tema de Deus – seja num sentido mais ortodoxo ou mais heterodoxo – está sempre presente, bem como o da organização da sociedade, dos fundamentos do Estado, origem e finalidade do poder, da ideia de Império, tudo isso são dados importantes para a ideia da construção de um destino comum, de um destino coletivo, que liga imediatamente com a questão da relação entre a Igreja e o Estado, questão que vem desde a fundação da nacionalidade até ao presente.

 A questão da identidade liga-se ao problema “Portugal”. De facto, a nossa cultura institucionalizou essa magna e persistente questão, vivida com particular ênfase pelos “estrangeirados”, mas não só. Problema que desencadeou, também, uma visão decadente e que hoje nos atinge. PC explica de modo cristalino, como passámos de uma “perspetiva de segurança profunda do nosso destino até finais do séc. XVII” e rapidamente caímos no seu oposto, para uma ideia de “povo que pouco vale”, somos como uma folha em branco a ser escrita e moldada não já por nós, mas pelos de fora, pelos europeus, que trazem a garantia e o progresso, sinónimo de modernização do País!

Por último, uma reflexão sobre o sentido da homogeneidade de pensamento do Séc. XVIII. Neste Século das Luzes há “uma grande identidade de pensamento entre os autores”. O problema que os move é, sobretudo, o combate à Escolástica e a imposição pela força do Estado absoluto e do despotismo esclarecido, de modo “a retirar Portugal do domínio da Escolástica e do modelo cultural da Companhia de Jesus”. Havia uma consciência dramática, trágica, de que Portugal estava numa via errada, tinha escolhido um caminho errado. E era preciso emendá-lo, com urgência.

Uma entrevista a rever e refletir, em todo o tempo.

sábado, 28 de março de 2020

Uma Viagem ao Pensamento Filosófico Português


Página de "Filosofia Portuguesa", organizada por Pedro Calafate [PC] (que dirigiu também a extraordinária publicação História do Pensamento Filosófico Português, Lisboa: ed. Caminho, 1999 e ss.), que pretende, sinteticamente, «fornecer um conjunto de informações básicas sobre o panorama da cultura filosófica portuguesa», no dizer do próprio.
Aí apresenta o elenco de autores e temas e respetiva bibliografia, remando contra o tão frequente "não sei nem conheço", ou até mais radical "não há nem existe", quando de filosofia portuguesa se trata, «dando lugar a um colonialismo interno de efeito pernicioso».
Logo na Introdução, PC orienta, de modo cristalino, o leitor para a legitimação do modo português de filosofar, no qual não predomina, certamente, a expressão sistemática da reflexão, mas que nem por isso deixa de revelar plena coerência, profundidade e transcendentalidade das suas orientações. Por isto mesmo, será uma filosofia mais dispersa por textos ora de «tendência adissertacional», ora mais ligados a causas distintas, sociais, políticas, estéticas, pedagógicas, religiosas, etc., exigindo o desdobramento da pesquisa e da leitura por um corpus mais dilatado, à medida dessa diversidade textual. Mas o não predomínio de uma filosofia de sistema, não significa que esta tenha estado, entre nós, totalmente ausente, como o ilustra a escolástica renovada e o positivismo.
Na referida Introdução, PC justifica a opção cronológica e o elenco apresentado, iniciando-se com Paulo Orósio e S. Martinho de Dume, e finalizando na obra de Vergílio Ferreira.
Uma página muito útil para quem deseje iniciar-se nesta viagem de aproximação ao Pensamento Filosófico Português.
Períodos [autores] analisados:
> Época Medieval
> Renascimento e Contra-Reforma
> As Luzes
> Do Século XIX até à Proclamação da República
> A Filosofia Portuguesa depois de 1910

quarta-feira, 25 de março de 2020

Confissões de mulheres apaixonadas... pela Filosofia!


[clique no link]
Interessantes testemunhos sobre o modo e o porquê do entusiasmo destas jovens mulheres pela Filosofia. 
"O pensar sobre o pensamento" fascinou a Isabel. Juntamente com a descoberta da Filosofia como esse lugar de liberdade, onde se refez das ditaduras que tanto a condicionaram.
Susana já lia Nietzsche desde os doze anos!
Luciana virou para a química, mas não pôde prescindir de questionar a natureza do átomo, da molécula... e aí entendeu que precisava de uma âncora que lhe respondesse a "algo mais" que a sua ciência, só por si, não lhe dava.
Juliana, já pressentia, como criança, juntamente com a sua beleza, a sua intrigante "diferença" no perguntar; era o insistente "porquê" que não mais a abandonaria.
Ana Cristina, também, desde muito jovem, representava o mundo e a sociedade como um grande palco, tudo encenado…  Tanta orquestração só a poderia atrair para a inevitável interrogação: o que é que isto tem de autêntico? Onde está a verdade?!
E assim a Filosofia faz mesmo caminho, encarnando nestes rostos, remexendo estas vidas. 
O sentido da religião, da política, da arte, do outro, da natureza, da razão, da finitude... e sempre, sempre, a construção da felicidade. São tantos os abraços da Filosofia!
Um conjunto de entrevistas a ver e problematizar.