A crise da palavra e as Categorias de Aristóteles
- Neste apontamento procuramos mostrar que a crise atual da palavra não está desligada do modo como concebemos e interpretamos os conceitos/termos básicos da linguagem. Daí a necessidade de regressarmos à doutrina aristotélica das Categorias, um texto fundamental para a Lógica.
- O apontamento foi publicado no Jornal "Diário do Minho" (Braga), em 26.12.2018, p. 16. Mas está também disponível (em livre acesso) na edição digital - clique aqui
- Relacionado com o mesmo assunto, recomendamos, também, a leitura do "Prefácio" ao fascículo 3 (2018) da Revista Les Études Philosophiques, com tradução e adaptação feita por nós.
- Foi a publicação deste fascículo que deu o mote ao nosso apontamento.
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"CATEGORIAS DA LÍNGUA, CATEGORIAS DO SER" / "PREFÁCIO"
Kristell
Trego.
“Catégories de langue, catégories de l’être” - “Avant-Propos”
in Les Études philosophiques, 2018,
3, pp. 337-338
(trad.e adaptação de Carlos B Morais)
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[337] Se as categorias
são modos de predicação, não corresponderão elas à estrutura do discurso, bem
longe de se conformarem à ordem do real? Um tal questionamento foi certamente
muito vivo, quando, no séc. XIX, Adolf Trendelenburg sustentou que as
categorias retomavam distinções gramaticais, mas que visavam também conteúdos
conceptuais. Desde a sua lição inaugural, (…) convida a ultrapassar a origem
gramatical das categorias, para reconhecer a maneira como elas se referem à
própria natureza das noções. Conhece-se o debate que o oporá a H. Bonitz. O
séc. XX recebeu a herança. No seu artigo «Catégories de pensée et catégories de
langue», inicialmente publicado há 60 anos na revista Etudes philosophiques
(1958), E.
Benveniste retomou a questão para afirmar: «Na medida em que as categorias de
Aristóteles se reconhecem válidas para o pensamento, revelam-se como a
transposição das categorias de língua. É o que se pode dizer que delimita e
organiza o que se pode pensar» (Problèmes de linguistique générale, Paris,
Gallimard, 1966, p. 70).
Tal
como Kant não foi o primeiro a procurar uma ordem das categorias (contra o seu
pretendido carácter rapsódico), a questão das relações das categorias à língua,
ao pensamento, mas também ao real, não nasceu com Trendelenburg. Uma tal
questão ritma a história da receção das categorias. A exegese neoplatónica
grega fornece a moldura: as categorias serão palavras, conceitos, ou coisas?
Não é necessário enfatizar uma resposta, em detrimento das outras: as
categorias não seriam de facto, como nos convida a pensar Simplício, palavras
significando conceitos, e remetendo a coisas?
O
presente caderno pretende esclarecer a tese de Trendelenburg, retomando uma
certa história das categorias que aí vê uma fala (une parole) sobre o ser. Mais
do que [338] uma alternativa entre
categorias da língua e categorias do pensamento, as categorias confronta-nos,
para além das palavras que as dizem, com uma certa maneira de perspetivar o
real. As contribuições que vamos ler propõem examinar a maneira como as
categorias não se deixaram reduzir à determinação linguística que as viu
nascer. Atentos à linguagem na qual se dizem as categorias, os autores (dos
trabalhos deste caderno) encontraram-se confrontados com o problema da língua
das categorias. As categorias aristotélicas, assim traduzidas em diversas
línguas e de diversas maneiras, não se poderiam deixar restringir à língua
grega que as viu nascer. O seu confronto com a gramática conduziu de facto a
exibir uma dimensão inteligível das categorias, irredutível a factos da
linguagem.
Num
quadro teológico, ou na juntura da lógica e da metafísica, a doutrina das
categorias viu-se retomada para apreender o que é nas suas diferentes facetas.
Veremos em Bizâncio Photius servir-se das categorias para pensar a predicação
da humanidade a tal homem singular, tal como [a predicação] da divindade a
Deus. Examinaremos, no território do Islão, a retoma de um questionamento
neoplatónico acerca da simplicidade ou composição das dez categorias.
Descobriremos igualmente um reinvestimento da doutrina das categorias
promovendo o conceito de «coisa» para apreender o que é. Perspetivaremos, em
terra latina, uma reflexão sobre a dimensão lógica ou metafísica da ciência
categorial. Prestaremos atenção, na Inglaterra do séc. XVIII, à retoma de um
questionamento categorial para combater o inatismo de Locke e afirmar a
atividade do espírito. Consideraremos de seguida as múltiplas maneiras
propostas por Brentano para pensar as categorias e constituir uma ontologia.
Regressaremos a Trendelenburg e olharemos para a leitura que ele efetuou em
1846 do questionamento iniciado na sua lição inaugural, sobre a programação das
categorias.
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